domingo, 23 de fevereiro de 2014

Chuva

Eu gostaria de ter a possibilidade de dizer que a chuva leva consigo todas as agonias que afligem nossos dias com maestria. Mas não.
Quando ela começa a espatifar as suas pequenas gotas na janela nos mostra como nossas vidas são efêmeras. É uma cidade grande, cheia de pessoas, preocupações e medos, pouca poesia e muita hipocrisia.
No cinza chumbo dos olhares dos passantes a indiferença crua. As vontades reprimidas e catalizadas na rotina fria da lenha que saímos para carregar todos os dias.
A insuportabilidade de uma vida repleta de companhias e sem companhias ainda assim, e de qualquer forma, vazia. Necessidades não atendidas, agonizantes alegrias que nos põem em cheque com aquilo que carregamos por dentro, como se a simples passagem de um mero sol de outono nos trouxesse calor para uma eternidade.
Nas paredes fechadas desse concreto são paulo, o medo lado a lado com a solidão e o medo da solidão.
As formas como os corações são magnetizados por segundos e por segundos apenas pulsam como se pudessem ser livres para depois serem escravizados.
Essa é a mesma passagem de tempo e, assim como escorre a areia entre os dedos, cada respiro é uma oportunidade perdida.
Na passagem da improdutividade o receio do nada e o nada que cerca nossos capítulos nessa peça chamada sua história, que nos disseram que seria grande, que seria significante. E no final de tudo não é nem poeira de estrela.
Um tal pensamento positivo que nos consola, na medida em que acreditando na mudança de um indivíduo, acreditássemos numa mudança que não teria freios quaisquer.
Mãos que acidentalmente se tocam e lábios que ocasionalmente um dia se encontraram não contam mais histórias épicas, resumem-se a 147 caracteres, apenas.
E de repente um vácuo de objetivos ou de quereres coletivos, ou de desafios. Não é um desafio acordar, tomar café, bater ponto e voltar pra casa, é e não é. Um desafio seria mudar essa sequência para realizar algo realmente que te encante durante todo o dia e toda a vida.
Algo tão encantador quanto uma aurora boreal, ou um gato andando de guarda-chuva, algo realmente diferente e capaz de te deixar absorto em seus pensamentos por uma vida, algo que nos conectasse a nós mesmos e nos aproximasse uns dos outros.
Uma derrubada das paredes, um trator, um taque militar, a ausência total e completa daquilo que nos faz únicos para que simplesmente fôssemos um.

A chuva não lava nossas almas. Lava as ruas, talvez, alaga as casas, alivia o calor. A única e eficiente forma de lavar a alma é com gotas lacrimais.
Que não percamos o encanto delas, e que não nos percamos delas na chuva. Ou nos dias.
Ou na vida.

Um comentário:

  1. Muito interessante e reflexivo esse texto. Me fez lembrar, na verdade lembrar não é a palavra certa, mas sim pensar naquilo que vejo todos os dias, nas ruas, no metro, no ônibus, nas bibliotecas, na universidade: a falta de sentido da vida, que consequentemente leva ao vazio das relações humanas. Os sensíveis, como você, acabam isolados, solitários. Já os fúteis, alienados, indiferentes. Pelo que eu observo, no mundo contemporâneo, pautado no material, no consumismo, na futilidade, na banalização e na quase morte do amor, do romantismo, dos sentimentos, o ser humano sensível se torna quase que invariavelmente um solitário, e perante os demais (aqueles que são tomados pela futilidade), é visto e tratado como um leproso. Eu entendo o que você disse da solidão, atualmente, é quase uma condenação perpetua, pois as pessoas que sentem, essa é a palavra certa, sentir, estão lamentavelmente condenadas. Na real, só os imbecis (desculpe por esse termo) que não ligam pra nada a sua volta, pois são incapazes de sentir é que não se tornam “solitários”, vivem sempre acompanhados de outros imbecis. Já os indivíduos sensíveis são pouco associativos, pois estes são “animais” em extinção. Mas, no fundo, se você pensar bem, esses imbecis são tão solitários quanto aqueles que sentem. Esses indivíduos possuem um enorme vazio dentro de si, e eles tentam disfarçar e preencher esse vazio com drogas, álcool, sexo banal sem sentimento desenfreado, tudo na esperança de preencher esse vazio, mas eles não conseguem. A única coisa que isso lhes proporciona é uma falsa sensação momentânea de “prazer” e “felicidade”, mas assim que o efeito fugaz dessa forma de “escapismo” passa, eles mergulham novamente na sensação de vazio. Não é por acaso, que atualmente remédios para depressão estão sendo usados, de forma abusiva, cada vez mais cedo, por jovens. Por isso, a vida dessas pessoas é de aparência, bem hipócrita. Falsos amigos, falsos amores, falsos prazeres.

    Os primeiros entendem as causas, e sofrem com isso, já os segundos sentem apenas as consequências, mas não enxergam a causa.

    É o vazio no mundo atual, da vida. E não importa o lado, ele pega todos, não há como fugir dele, poucos conseguem. Como diz Allen Ginsberg, na biografia do Kerouac: Assim, ele bebeu ate morrer. Que é apenas mais um jeito de viver, ou de lidar com a dor e a inutilidade de saber que tudo não passa de sonho e de um grande, desconcertante e bobo vazio.

    Abraço.

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